januaria e helena

segunda-feira, março 07, 2005

para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura

Poema de Natália Correia, que fiquei a conhecer pela magnifica interpretação de José Mário Branco, de quem sou fã, incondicional.

Este texto é quase do tempo em que os animais falavam, e referia-se de maneira sub-reptícia à ida para para a guerra do Ultramar, penso eu... aceitam-se comentários de pessoas mais letradas

Mas continuam a dar-nos tudo isso, com outros objectivos, a encherem as nossas cabeças com prioridades secundárias, a mandar areia para os olhos, enfim,
fiquem bem,
digiram este texto e tirem conclusões



QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS


Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
p’ra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

Natália Correia

1 Comments:

  • Obrigada por recordares Natália Correia. È sempre um momento mágico, ler a sua poesia. Pode ser que o poema se refira à ida para o Ultramar, ou talvez ao queixume dos jovens pela morte (nem sempre física)que lhes é dada em vida... Tanto faz! A magia pode explicar-se,mas eu prefiro mais este momento em que usufruo o texto sem ter que o desmontar.
    Um BEIJO em flor neste hoje dia da MULHER. É aborrecido que todos os restantes dias do ano sejam o dia do HOMEM, correcto?
    Anyway...

    By Anonymous Anónimo, at 8/3/05 20:01  

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